- 1.1
- Um olhar sobre o Antigo Egito no Novo Mundo: a Biblioteca Pública do
Estado do Rio Grande do Sul, 1922. Margaret Marchiori Bakos Introdução
Este artigo faz uma busca, sob o ponto de vista histórico, acerca dos
sentidos1 de elementos artísticos egípcios na decoração da sala da
Diretoria da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, incluídos
na reforma do prédio, em 1922. Ele analisa uma reportagem do jornal A
Federação2, órgão oficial do governo do Estado, sobre as solenidades
de inauguração das novas instalações. E discute a gênese dessa
ornamentação, na perspectiva de práticas internacionais de valorização
do antigo Egito. Práticas de Egiptologia e Egiptomania Em 22 de setembro
de 1822, Jean François Champollion comunicou à Academia Francesa de
Belas Artes sua grande descoberta: o deciframento dos hieroglifos. O fato
levou à criação de uma ciência: a egiptologia, com o objetivo de
estudar e salvaguardar o patrimônio cultural daquela civilização. O
presente artigo - um olhar sobre o Egito antigo no novo mundo - refere-se
a um tipo diferente de interesse e de prática sobre a cultura nilótica:
a egiptomania. A identidade entre a egiptomania e a egiptologia é o
interesse, de ambas, pelo Egito antigo. A diferença consiste no grau e no
direcionamento dessa atenção. A busca e o culto pelos vestígios
originais daquela época caracteriza a egiptologia. A tentativa de dar um
novo olhar e uso aos princípios fundamentais das criações egípcias
antigas singulariza a egiptomania Pode-se dizer que essa prática conjuga
ciência e imaginação ao formar a sua substância a partir dos dados
acadêmicos, do saber popular, transmitido por viajantes e escritores, e
do repertório de crenças e mitos universais. A egiptomania se manifesta
em todas as artes no ocidente, desde a arquitetura, música, pintura,
escultura até o cinema. Não há gênero que tenha 1 GOULEMOT,J.M. A
leitura como produção de sentidos. In.:CHARTIER,R. Práticas da
leitura.São Paulo: Estação Liberdade, 1996:107 2 A Federação é o
primeiro órgão oficial do Partido Republicano Rio-grandense. Fundada em
1883, tinha como objetivos primordiais discutir e sustentar a legitimidade
do governo republicano no Brasil. Nessa intenção, cabia-lhe ainda
sustentar a pertinência da adoção dos princípios de administração pública
desenvolvidos por Júlio de Castilhos, a partir do pensamento expresso por
Augusto Comte. Sobre o positivismo, ver: BOEIRA, N.O Rio Gande do Sul de
Augusto Comte.
- 2.2
- escapado dessa influência, fato que torna impossível dar exclusividade
a uma maneira de classificar e/ou de sistematizar suas práticas. O termo
- egiptomania - refere-se a um exercício mais antigo que o da
egiptologia, mas essa palavra somente aparece na Europa no decorrer da
primeira guerra mundial. Ela surge com o sentido de reutilização de
motivos do antigo Egito na criação de objetos e de narrativas contemporâneas,
para apontar e localizar a ocorrência dos desejos sobre objetos egípcios
antigos autênticos e da valorização cultural deles, a partir de novos
critérios de beleza, materiais e técnicas artísticas. A egiptomania tem
uma longa história no continente europeu. Ela inicia com os translados de
monumentos egípcios e obeliscos, pelo imperador Augusto, do local de
origem, para Roma, como representações do seu grande e novo poderio. A
paixão pelo Egito ressurge na Renascença, graças à criação da
imprensa, quando os livros se multiplicam, o interesse do homem pelas próprias
realizações aumenta e os progressos técnicos facilitam a navegação ao
oriente. O mundo letrado dos finais do século XV, face ao incentivo dos
humanistas, descobre o Egito, pelos relatos dos viajantes e dos
historiadores antigos. Depois, novamente, no século XVIII, antes da
expedição de Napoleão Bonaparte, mas, certamente, incrementada por ela,
a egiptomania, na Europa, sofre extraordinário momento de grandeza Séculos
de egiptomania deixaram legado de objetos e de produções com uma
qualidade tão surpreendente que um não especialista poderá confundi-los
com a genuína arte do antigo Egito. Em todos os países do ocidente sem
exceção, tem-se tentado imitar a arte egípcia. Obeliscos, pirâmides e
esfinges são as formas mais populares visíveis em todo o lugar. Além
disso, qualquer criação moderna neo-Egípcia pode fazer parte da
egiptomania, se ela é reinterpretada e reusada de maneira que lhe dê
novo significado, como nos filmes ou em publicidades. O mundo voltou-se
entusiasmado para o Egito quando da abertura do canal de Suez em 1869. O
evento levantou uma verdadeira onda de Egiptomania e estreitou os laços
entre o país de origem e aqueles que o estudam. O período entre o início
do século XX e o aparecimento do estilo da Art Deco testemunhou uma
grande revolução na arte e o desenvolvimento de uma diversidade imensa
de expressões artísticas. Essa criatividade se fez no contexto de um
acontecimento que gerou a famosa sentença: "Finalmente fizemos uma
descoberta maravilhosa no vale; uma magnífica tumba intacta." Com
essas palavras, o arqueólogo Howard Carter encerrou uma longa, dedicada e
incansável busca nos desertos Egípcios e anunciou, em novembro de 1922,
ao seu patrono britânico - Lord Carnavon - a mais importante
- 3.3
- façanha arqueológica do século XX e/ou de todos os tempos, segundo
alguns: o achado dos tesouros funerários do Faraó Tutankhamon.3 Esse
fato desencadeou uma insaciável apropriação dos elementos e símbolos
egípcios ali encontrados, com inúmeras finalidades, desde a fabricação
de jóias, para uso pessoal, à utilização de elementos decorativos,
para a edificação de prédios populares. Nesse mesmo ano, às 14 horas
do dia sete de setembro, realizou-se a inauguração oficial das novas
instalações da Biblioteca Pública4 do Estado do Rio Grande do Sul,
depois de importantes reformas. Entre as modificações feitas,
salienta-se a decoração de uma das salas do prédio com motivos e
elementos característicos do Egito antigo, fato que este artigo se propõe
estudar à luz do contexto das práticas de egiptomania narradas. A
Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul É importante lembrar
que Porto Alegre, capital do Estado desde 1773, exerceu, a partir de
meados do século XIX, o papel de centro de transmissão da cultura
cosmopolita no Rio Grande do Sul. Desde então, a cidade acolheu os
jovens, oriundos de famílias da oligarquia rural ou descendentes de
pequenos proprietários rurais de áreas pastoris de latifúndio, ou de
estancieiros em processos de descenso social e que vieram à Capital para
estudar. (OLIVEN, 1993:147) Nesse afã, foi planejada a criação e
instalação de uma Biblioteca Pública do Estado através da Lei
Provincial n.724, de 14/4/18715, que autorizou a presidência a despender
até a quantia de oito 3 O Faraó Tutankhamon viveu no período entre
1338-1328 ªC. Ele morreu com apenas 20 anos de idade. Até agora, a sua
tumba foi a única encontrada intacta. Os tesouros nela encontrados estão
abertos à visitação do público no Museu do Cairo. Pela sua riqueza e
beleza justificam a viagem até lá. 4 Desde o começo do século, o
porto-alegrense dispunha de lugar especial para ler jornais, mas
biblioteca mesmo não havia, ao menos como a entendemos hoje, explica
Riopardense de Macedo. Só em janeiro de 1877, dia 21, é que o
porto-alegrense receberia sua Casa de Livros, em uma sala emprestada do
Atheneu Rio- Grandense, instituição escolar localizada na área central
da cidade.(MACEDO, 1982:66) 5 Aprovado o regulamento, começou a funcionar
a Biblioteca sob a direção do Dr. Fausto de Freitas e Castro, com toda a
regularidade. Sucedendo a esse primeiro bibliotecário, a quem coube o mérito
de haver sido o fundador da Bibliotecoa, foram nomeados diretores do
estabelecimento, por ordem cronológica: Dr. Frederico Bier, em
22/10/1878; Dr. Joaquim Pedro Soares, em 26/5/1879; Dr. Graciano de
Azambuja, em 5/7/1882; Dr. Pedro Soares, em 15/9 do mesmo ano, Prof. J.
Henrique Duplan, em 30/3/1885, J.Pedro Soares, em 2/10/1886; Prof. Duplan,
em 29/4/1886; Dr. José Pinto da Fonseca Guimarães, em 11/2/1897.
Finalmente, em 14/3/1906, assumiu Victor da Silva, a quem se deve a
organização definitiva da Biblioteca. Muito mais tarde, ela passou a ser
uma seção da Repartição do Arquivo Público, sendo desanexada, por
decreto n.1435, em 11/2/1909, para formar uma instituição autônoma.
Nessa época, a Biblioteca funcionava no edifício da antiga Escola
Normal, onde por algum tempo esteve situada a Escola Complementar, e onde,
hoje, funciona a Secretaria de Obras Públicas. Ela ocupava a ala direita
da construção no piso térreo. Tendo determinado o Governo a construção
de um prédio próprio, realizou-se a mudança da Repartição no ano de
1915, para o
- 4.4
- contos de réis para aquisição de livros que constituíssem o princípio
de uma biblioteca pública nesta capital. A nova organização cultural
começou a funcionar só em 21/1/1877, no prédio do antigo Liceu, à
esquina das ruas Duque de Caxias com Marechal Floriano. (COSTA
FRANCO,S.1992:74). O atual prédio da Biblioteca Pública, à Rua
Riachuelo, esquina de General Câmara, começou a ser construído em
7/2/1912, com base num projeto do engenheiro porto-alegrense Afonso Hébert.
Em 22/5/1919, o Estado contratou a construção das obras de aumento, que
ficaram concluídas em julho de 1921 e aprimoradas ao longo do ano
seguinte. (COSTA FRANCO,S.1992:74) Toda a decoração foi realizada, sob
inspiração do poeta Victor Silva6, o diretor, razão pela qual ele se
tornou o protagonista desta narrativa.7 À cerimônia de inauguração da
Biblioteca compareceram além do Dr. Borges de Medeiros, Presidente do
Estado, uma plêaide de homens ilustres de Porto Alegre, representantes de
países estrangeiros, Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos,
Argentina, Uruguai, Portugal e Itália, diretores de repartições
federais, estaduais, conselheiros municipais e comissões dos institutos
de ensino, etc. A magnitude do novo prédio e a cerimônia organizada para
a inauguração são indícios da importância dada, à época, à
Biblioteca Pública. Segundo o relato de A Federação, a cerimônia
iniciou no momento em que o Presidente do Estado - Antonio Augusto Borges
de Medeiros - tomou lugar à mesa, colocada no fundo do salão nobre,
ladeado pelos Secretários de Estado e abriu a solenidade, concedendo a
palavra ao Sr. Victor Silva, Diretor do estabelecimento8, que proferiu
bela oração, desenvolvendo o tema da influência do livro na civilização
humana.9 Em seguida, o diretor levou os convidados a visitarem as novas
instalações. No dia 28 de setembro, a convite de Victor Silva, A Federação
registrou as melhorias: O primitivo edifício foi consideravelmente
aumentado, acrescido de mais sete salas e de um jardim. Segundo a
reportagem, A atual edifício na rua Riachuelo, esquina General Câmara,
que sofreu reformas a partir de 1919.(Porto Alegre em Revista, 1920: 76) 6
Victor Silva nasceu no Rio de Janeiro, a 7 de agosto de 1865 e faleceu em
Porto Alegre, a 13 de dezembro de 1922, quando vivia com entusiasmo e
vibração a extraordinária conquista da nova sede da Biblioteca Pública
do Estado. (SILVEIRA,C.F., In: BAKOS,M. & PIRES,L. 1999:23) 7 Segundo
informa Jardim (1982), Arthur Ferreira F, Diretor da Divisão de Cultura,
remodelou os vestíbulos, a secretaria e as salas de leitura. Ele foi
assessorado pelo pintor, de origem italiana, aqui residente - Ado Malagoli
- Para esse artista, as decorações primitivas não tinham valor artístico
e contrastavam com a bela arquitetura do prédio. 8 Apontado como diretor
da Biblioteca Pública r de 1906 até 1922, Victor Silva, em 6 de janeiro
de 1922, segundo a Federação, foi reconduzido ao cargo de Comissário do
Teatro São Pedro, onde serviu pelo espaço de seis meses, quando veio a
falecer. 9 Federação, Porto Alegre, 7/9/1922, p.2\
- 5.5
- primeira impressão que se tem ao penetrar nos umbrais do novo edifício
da BP, é a de que, há uma rica suntuosidade. Todo o conjunto contribui
na busca dos efeitos de solenidade, imponência e severidade em reforço
às palavras gravadas em bronze na porta da entrada: Aqui circula o espírito
do mundo. Do vestíbulo, caracterizado como pompeiano, onde havia um
grande vestiário, passava-se ao salão nobre, destinado pelo Governador
para conferências sobre altos estudos a serem organizados: Sua pintura é
de um tom verde-claro e vermelho-sombrio, com ornamentos de ouro. Ao
centro, 8 colunas de mármore canaluradas até o teto, com capitéis de
bronze dourado a fogo. Na parede do fundo, ao centro, o grande quadro de
Parreiras, intitulado "A prisão de Tiradentes". Acima do
quadro, em metal, havia um livro aberto, em perspectiva, onde estava
gravado um pensamento do Dr. Júlio de Castilhos: Nestes tempos de renovação
e de espírito novo, as Bibliotecas são os verdadeiros templos
religiosos. Na Galeria central, nos dois lados do livro, achavam-se também
em relevo estas linhas de Cícero: Sine libris deus silet, justitia
quiescit, tarpet medicina, philosophia macet, litterae et artes tacent,
omnia in tenebris inuoluta sunt.10 O soalho da sala, como o de todas as peças
da Biblioteca Pública, de acordo com o jornal, era feito de parquê de
duas madeiras, nas cores preta e amarela, encomendadas especialmente do
Pará.11 Nas extremidades do salão, sobre duas colunas de mármore, jazem
dois bustos em bronze dos Drs. Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.12
Do salão de conferências, dizia a reportagem, havia duas salas contíguas,
separadas por arcos, que repousavam sobre 48 colunas de mármore branco,
com capitéis de bronze dourado, reservadas às consultas das senhoras. Na
primeira delas, no centro, havia uma grande mesa, forrada com veludo verde
franjado, destinada à leitura de revistas, magazines e jornais de modas.
Nela estão colocados três lampanários de bronze. Ao redor, dispunham-se
pequenas e elegantes mesas, com poltronas estofadas de couro vermelho. Na
segunda sala, conforme o jornal, a pintura imitava um estofo Pompadour:
amarelo dourado e todo ele guarnecido de pequenos ramos de rosa de vários
tons. Do teto, pendem 6 lustres de bronze e há quadros com uma águia de
brasão. Vêem-se guirlandas de violetas e cornucópias com esmaecidas
cores. 10 "Sem livros, Deus silencia, a kustiça aquieta-se, a
medicina entorpece, a filosofia adelga-se, as letras e as artes calam-se,
as trevas tudo envolvem".Tradução do latim do Prof. Dr. Pedro Paulo
Funari. 11 Os parquês foram executados, obedecendo a desenhos, com
madeiras do Pará em duas cores, o amarelo (Pau Amarelo) e o castanho
escuro (Acapu). (Relatório das Obras Públicas, 1921:11) 12 Trabalhos de
Décio Villares e Sanguini.
- 6.6
- A reportagem chamava a atenção para a presença, no salão nobre e nas
salas das senhoras, de 32 medalhões, em bronze dourado, com as efígies
dos grandes brasileiros mortos que ligaram o seu nome a uma obra de valor
científico, literário ou artístico, encravados na parede, nos cantos
dos arcos.13 A outra peça, considerada a mais luxuosa, alocava o Gabinete
da Presidência, em estilo Luís XIV, que exibia, entre vários outros
objetos do luxuoso mobiliário, uma cópia exata da mesa do monarca francês
existente no Palácio de Versailles. Em torno dela, havia três poltronas
estofadas com ricos brocados vermelhos e guarnecidas com ornamentações
de bronze dourado; sobre a mesa, uma jardineira de majólica.14 Ao fundo,
no centro da parede, em uma moldura de madeira esculpida com riquíssimos
lavores, via-se novamente o retrato de Borges de Medeiros15. Chamava ainda
atenção, nesse ambiente, a imagem da Lei, entre os ornamentos de largo
sofá e duas amplas poltronas, estofadas de um brocado de Gobelin,
vermelho, tecido com fios de ouro. Ainda segundo a reportagem É de se
admirar as duas artísticas galerias de bronze, de onde pendem, armados
com arte, as reposteiras de seda vermelha: numa galeria vê-se a figura
pensativa de velho, de longas barbas, que é o tempo, tendo em uma das mãos
um livro aberto - A constituição do Estado - na folha do volume o
retrato de Júlio de Castilhos. 16. Para subir ao segundo piso foi
colocado um elevador, em cujo vestíbulo, no primeiro piso, segundo as
palavras da reportagem, podia-se admirar (...) quatro formosíssimos painéis,
trabalho em alto relevo em bronze, que representam episódios dos cantos
da Divina Comédia: o de Paolo e Francesca quando passam arrastados pelo
infernal torvelinho; o do encontro de Dante e Virgílio com o grupo dos
antigos poetas, no limbo; o da passagem das Três virtudes teologais, no
Purgatório; e, por fim, o do êxtase do Alighieri diante de Beatriz, no
Paraíso. Sobre esses painéis, quatro figuras de monstros 13 José Bonifácio,
Visc. Do Rio Branco, Teixeira de Freitas, Barão de Rio Branco, Quintino
Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Gonçalves Dias, Araújo Porto Alegre, Machado
de Assis, Euclides da Cunha, Raul Pompéia, Olavo Bilac, Benjamim
Constant, Júlio de Castilhos, Miguel de Lemos, José do Patrocínio,
Benedito Ottani, Aluísio Azevedo, Alvares de Azevedo, Félix da Cunha,
Tobias Barreto, Oswaldo Cruz, Araújo Ribeiro, Fagundes Varela, Visc. De
Taunay, Basílio da Gama, José de Alencar, Victor Meirelles, Pedro Américo,
Araújo Viannna, Carlos Gomes e Castro Alves. 14 A maior das ilhas
Baleares (Espanha), onde se desenvolveu um rico artesanato ligado ao
turismo, a principal atividade econômica da ilha. 15 O retrato do Dr.
Borges de Medeiros foi feito por Oscar Pereira da Silva. 16 marca Otis,
- 7.7
- dantescos. Esses magníficos trabalhos são de autoria do escultor
italiano G. Gaudenzi e constituem, por certo, verdadeiras obras de arte. A
saleta do elevador, do segundo piso, tinha o mesmo estilo do Gabinete da
Diretoria. Conforme narra o artigo; o teto representa uma luta de águias.
Suspensa do plafond, por correntes de bronze, uma grande lâmpada côncava
de mármore verde, com manchas escuras. Terno forrado de veludo verde.
Tapete wilton, de cor azul e roxa. Num cavalete esculturado, o quadro da
pintora riograndense Anna Roriche: Cabeça de Velho. Ao comparar as
minuciosas exposições sobre as decorações das peças com o relato
sobre a ornamentação do vestíbulo e do Gabinete da Diretoria, nota-se
uma diferença muito grande na densidade e no entusiasmo do redator. No
primeiro momento, para a valorização dos cenários iniciais, há
adjetivos qualificativos e descrições muito densas dos elementos e
objetos presentes, ao passo que, no segundo momento, o texto se torna
sucinto e inábil na valorização dos ambientes. A reportagem faz uma
referência estéril sobre a decoração de cunho oriental, sem o apelo
aos adjetivos qualificativos generosamente usados na valorização de
expressões artísticas, de outras épocas históricas e de origem
ocidental. A reportagem, pode-se dizer, contém, encerra, exterioriza uma
atitude de desatenção para com os detalhes orientais da ornamentação
da sala. Leia-se: Gentilmente acompanhados pelo diretor, sub-diretor e
demais auxiliares da Biblioteca Pública, passamos para o Gabinete da
Diretoria, que é, depois do Gabinete da Presidência, o mais luxuoso do
interior do edifício. O seu estilo, como já dissemos, é o egípcio, com
decorações originais e adequadas, onde predominam os tons vermelhos,
mobiliário gótico-florentino, composto de amplas poltronas de canapé
estofadas e de madeira esculturada, mostrando monstros simbólicos da
Divina Comédia. Quase ao fundo, uma grande mesa artística, sustentada
por duas figuras de bronze, representando os condenados do inferno
dantesco, a carregar pesos; os trabalhos de escultura foram também
executados pelo Prof. Gaudenzi, que teve a concepção do móvel.17 (o
grifo é nosso) A reportagem transcreve os três trechos da poesia de
Dante ali escritos, refere a presença de dois medalhões com a pintura a
óleo do poeta e de Beatriz 17 Nas duas janelas, com reposteiros de gorgorão
vermelho, vêem-se as galerias, que são dois demônios de Dante, e estes,
debruçados num varandim, suspendem uma fita preta de madeira lavrada onde
se lê, em letras douradas, o terceto do poeta: Considerate la vostra
semenza: fatti non foste a viver como bruti ma per seguir virtude e
conoscenza
- 8.8
- e, finalmente, informa que, numa parede lateral, sobre um soclo de
madeira esculturada, uma esfinge parece dormir. O texto também reproduz,
sem comentários o terceto registrado na almofada do soclo (mostrado na íntegra
neste artigo, mais adiante). Embora considerada a peça mais luxuosa do prédio,
depois do salão da Presidência, a decoração oriental da sala do
Diretor não recebe, nessa reportagem, outra atenção, exceto a breve
referência ao estilo egípcio e a existência de dois tapetes egípcios
estendidos no parquê. Em contrapartida, o jornal descreve minuciosamente
os elementos decorativos das paredes da sala da diretoria, que exibem
outros versos do poeta e pinturas, a óleo, dos bustos de Beatriz e de
Dante. O jornal chama a atenção, sem atentar para os elementos egípcios
presentes, para a figura de mulher, pintada em relevo, em imitação de
efeito de escultura, a qual leva um facho na mão e espreita atenta o
horizonte. No soclo, onde a imagem se firma, está escrito o conhecido
aforisma de Augusto Comte: Conhecer para prever.18 Dessa peça,
qualificada de magnífica, prossegue a narrativa do visual na sala dos
professores, decorada em rigoroso estilo mourisco de Alhambra, de Granada.
A reportagem ainda se esmera em detalhar o ambiente, apontando os seus
diversos elementos decorativos, desde as correntes de bronze que caem de
duas lanternas orientais, com lavores de bronze dourado e cristais
facetados, as colunas de mármore com os bustos em bronze de Camões e
Shakespeare, o retrato a óleo de Protásio Alves, até duas obras de
Pedro Weingartner. A avaliação final demonstra o grau de apreço pelo
ambiente produzido: Toda esta sala dá, a quem a contempla, uma verdadeira
sensação de deslumbramento. A sala da secretaria da Biblioteca Pública,
contígua à dos professores, é igualmente louvada pela decoração das
paredes, mobiliário e objetos vários. Na sala dos livros, cerca de três
mil, com paredes pintadas de branco, contam-se 82 estantes, de três
andares, esmaltadas de verde e numeradas com placas de metal amarelo. A peça
contém ainda duas mapotecas, catálogo decimal com inscrição. Ela é
iluminada por luz indireta de 6 plafonniers de bronze, dourado, e em todas
as estantes há lâmpadas próprias. Para o trânsito, entre os pisos, há
uma belíssima escadaria com degraus de mármore, guarnições de bronze,
que conduz ao andar térreo, onde estão as salas de leitura para o público,
a sala de catálogo para os autores e títulos e um pequeno jardim, com
uma linda fonte. A preocupação com a freqüência das mulheres, se
configura pelos dois salões, especialmente dedicados a elas e a 18
Connaitre ce qui est pour prévoir ce qui sera.
- 9.9
- construção da toilette feminina muito fina, tendo no seu plafond uma
pintura que finge bordado Richelieu. O tom laudatório que encerra a
descrição das novas instalações da Biblioteca Pública denota a
perspectiva da reportagem de estabelecer uma ligação entre as condições
estéticas e de conforto do estabelecimento e a imagem adiantadíssima de
cultura e de progresso conquistada pelo estado do Rio Grande do Sul,19
através das administrações públicas de Júlio de Castilhos e de Borges
de Medeiros, cujas efígies são inúmeras vezes representadas na decoração
do prédio. O olhar novo sobre o Egito antigo O objetivo deste artigo - a
avaliação da decoração egípcia na sala da Diretoria da Biblioteca Pública
- impõe, após a leitura da reportagem da inauguração, a busca da gênese,
da escolha e dos próprios elementos escolhidos, oriundos da civilização
Egípcia, para a decoração da sala, presentes no prédio na atualidade.
Encontram-se, na Biblioteca Pública, três tipos de representações que
podem, em uma primeira instância, caracterizar uma prática de
egiptomania: os motivos das pinturas parietais no vestíbulo do elevador e
na sala da Direção, a esfinge20 e o poema de Victor Silva, transcrito no
soclo da escultura, dedicado à figura mítica. Vimos que, na subida para
o segundo piso da biblioteca, pelo elevador, passa-se, antes de entrar na
sala da Diretoria, por um vestíbulo, cuja decoração a reportagem de A
Federação efetivamente não valoriza. Na saída do ascensor, na parede
à esquerda, surge, impressionante, nas cores vermelha, branca e azul, um
rosto de homem que porta um toucado típico egípcio na cabeça: o nemes,
Da decoração dessa parede ainda fazem parte flores de lótus abertas. A
sala contígua ao vestíbulo denominada, na época, de - Egípcia - se
destina ao Diretor. Não se conhece nenhum desenho preparatório para a
pintura dessa sala que possa esclarecer sobre as razões de Vitor Silva e
de 19 Para a utilização da imprensa como fonte de informação histórica,
ver:Claudio Elmir. As armadilhas do jornal: algumas considerações
metodológicas de seu uso para a pesquisa histórica. In.: LEAL.E. et. Ali
O uso das fontes: a bibliografia acadêmica, o jornal e o documento
oficial na pesquisa histórica.Porto Alegre, UFRGS, n. 13pp19-29. 20 A
escultura não tem o nome do autor, apresenta apenas uma placa de metal
com o número de registro 4196
- 10.10
- Schlater na escolha dos elementos usados a decoração, exceto a
preocupação estética. Isso se deduz pela existência, na Biblioteca, de
um livro com desenhos muito coloridos e decorativos que pertencia ao
pintor, em que ele, provavelmente, se inspirou para a criação das
figuras que decoram as paredes e os tetos não apenas desta sala, mas de
todo o prédio. Na sala do Diretor, de formato retangular, há muitas
aberturas, e as paredes generosamente decoradas estão pintadas com vários
motivos. Na parede à direita de quem entra pelo vestíbulo do elevador,
chama imediatamente atenção a imagem grotesca de uma cabeça frontal de
carneiro, inserida em um medalhão, encimado por duas cabeças de
serpentes aladas, com as bocarras escancaradas, cujas presas pontudas à
mostra completam a feição monstruosa da víbora. Essa composição exótica
utiliza de elementos decorativos egípcios e greco-romanos.21 Outra imagem
impressionante, presente na decoração das paredes nessa sala, é a
representação de uma figura feminina, que leva um facho na mão. O texto
de a Federação omite o detalhe peculiar dessa imagem, que, à semelhança
da pintura masculina, na parede lateral do vestíbulo do elevador, porta o
mesmo toucado do tipo egípcio - o nemes. Esta, na sala da Direção, se
encontra sentada sobre uma esfinge agachada, que porta um tipo semelhante
de orlado. A esfinge está rodeada por duas serpentes monstruosas,
agressivas, e repelentes como as descritas anteriormente. No soclo da estátua,
onde a imagem parece se firmar, está escrito o conhecido aforisma de
Augusto Comte, citado anteriormente. 22 Essa composição de figuras e
texto conferem um caráter muito peculiar ao ambiente, cuidadosa e
exageradamente 23enfeitado e colorido de forma sui generis, muito
diferente das outras peças da Biblioteca. Destaca-se na sala o friso
pintado sobre duas aberturas: a janela que dá para o pequeno pátio
interno, no térreo, e a porta que conduz para a sala dos professores. A
barra nos tons azul, vermelho e amarelo apresenta imagens de escaravelhos.
O inseto, como é sabido, é quase um sinônimo para o Egito antigo.24 21
O conjunto evoca uma tendência da produção artística característica
de mestres da Renascença italiana. Ver: ARGAN,G.1992:143. 22 A pintura
desta sala é original, tendo sido restaurada em 1960. Segundo informa
JARDIM, 1982: .56 23 Maria Lucia Kern esclarece sobre o excesso de
decorativismo que caracteriza o estilo do prédio da Biblioteca Pública.
24 A escolha do besouro para convenção de uma das formas do deus sol
revela, segundo Hart, a maestria dos Egípcios na observação da natureza
e a sua imaginação ao tentar entender o universo. O deus-sol na alvorada
é, assim, representado, na iconografia, pelo escaravelho devido a observação
dos egípcios sobre o hábito desse inseto de rolar suas fezes até formar
uma bola, da qual emergem outros escaravelhos, aparentemente de forma
espontânea. HART, 1987:108
- 11.11
- Chama atenção ainda na pintura do teto a presença de quatro urubus25
policrômicos. 26 A localização dessas imagens pode tornar-se
significativa, se entendermos, como salienta Starn27, a importância do
ato físico de olhar para o alto: ele causa a produção de um contraste
entre um "mundo" e outro, na imaginação do observador. Na sala
da Diretoria da Biblioteca, de fato, sente se de forma marcante a diferença
que essa atitude de observação produz, no visitante. Ele se nota
fascinado e surpreso entre um ambiente, característico dos finais do XIX
e inícios do XX, formado pelo conjunto de móveis pesados e sisudos, e as
figuras míticas faraônicas, que pairam acima de todo o espaço abaixo.
Enquanto a parte inferior define uma área de atividade pública, prática,
premeditada e, sobretudo, masculina, a pintura do teto remete a um imaginário
distante desse contexto pelos valores simbólicos em movimento escolhidos
e pelo contraste causado pelas cores vibrantes, diferentes dos tons
escuros do mobiliário pesado e sólido. As representações no teto da
Biblioteca Pública mostram abutres com as asas abertas, em ângulo, na
atitude de agitação. Na moldura dos cantos do teto, há enfeites de
gesso branco, que delimitam as pinturas de outros elementos decorativos,
alguns de origem egípcia, como as flores de lótus. É importante
valorizar a presença dessa planta na decoração, pelo significado que
possui na sociedade egípcia. O lírio da água, seu apelido, fecha à
noite e submerge na água - para levantar e abrir novamente na 25 Olhando
para cima, os olhos do observador logo são atraídos para as figuras de
urubus pintadas nos cantos da peça. Eles estão representados em poses
diferentes das convencionais, na arte Egípcia, que costumava mostrar a
ave basicamente em quatro posições e rígidas: de pé, com as asas
fechadas e/ou abertas para proteger figuras ou símbolos; voando; de
perfil, como quando protege o rei; ou vista debaixo, como é comum nos
tetos dos templos e nos santuários 26 Há, no mínimo, cinco diferentes
tipos de abutres (urubus) no antigo Egito. O mais conhecido é o abutre egípcio
cuja imagem era usada como a letra "a " na escrita hieroglífica.
Um pássaro maior parecendo um animal fabuloso, o grifo, é o mais comum
nas representações da arte Egípcia. Esse urubu está associado com inúmeras
divindades femininas, especialmente Nekbet da cidade de El-Kab no Alto
Egito. Quando esse local se torna proeminente no antigo Egito, Nekbet
assume o papel de uma deusa nacional e o urubu se torna uma figura heráldica.
O pássaro simboliza o deus nacional do Alto Egito - Nekhbet - e se tornou
um símbolo real na coroa do governante juntamente com o Uraeus.
Conhecidos pelo nome de Vulture, os abutres eram animais sagrados da deusa
de Tebas - Mut -, símbolos dos princípios femininos em oposição ao
escaravelho, que representa os masculinos. 27 STARN, R.(1992:284)
- 12.12
- alvorada. Este fato a torna, à semelhança do escaravelho, um símbolo
natural do sol e do ato de criação para os Egípcios antigos. É preciso
apontar, ainda, na sala da Direção, para os frisos com imagens do sol,
adornadas por elementos decorativos próprios daquela civilização. O
astro rei era o mais importante elemento da religião Egípcia e o mais
usado dos símbolos naquela arte.28 Finalmente se impõe uma referência
à presença de uma escultura na da Biblioteca, em pedra grés,29 de uma
esfinge feminina, com seios e que portando um nemes, o toucado egípcio,
em versão muito particular, estilizada. É possível que a autoria dessa
obra, que não está especificada na imagem, seja de algum dos
escultores,30 que assessoravam Victor Silva e Schalter nas obras de
reforma do prédio. De fato, é lugar comum que A esfingemania, de origem
estritamente egípcia, ou seja, das esfinges que portam o nemes, não
chame a atenção da história da arte, segundo Humbert, talvez por isto não
tenha sido importante nomear o autor da esfinge da Biblioteca. Essa
imagem, no entanto, junto com a pirâmide e os obeliscos, constituem os
maiores símbolos do Egito antigo e da prática da egiptomania, informa o
mesmo autor. Ele ainda explica que a esfinge ocupa uma posição especial
na história da sobrevivência do imaginário do antigo Egito, porque é o
único elemento que permaneceu em uso ininterrupto no mundo ocidental e
gerou uma multitude de interpretações, com uma liberdade muito grande
para criações.31 Finalmente, cabe uma reflexão sobre o significado e a
presença no solo da escultura da esfinge, locada no salão mourisco da
Biblioteca, dos versos do terceto final do poema Esfinge de Victor Silva,
diretor da Biblioteca Público, como foi mencionado várias vezes, no
decorrer da reforma do prédio.32 28 O sol parece ter sido primeiro
venerado como o deus Horus, depois como Re (e a combinação Horus-Re) e
mais tarde como Amun-Re. Com todos esses deuses, ele foi cultuado ao longo
de toda a história do Egito.28 29 JARDIM,1982:22 30 Parreira e Theophilo
de Barros são os escultores dos mármores e bronzes mencionados por Vitor
Silva. 31 Desde os finais do século XVII, quando a esfinges começam a
decorar os parques e construções da Europa, o tratamento de suas formas,
sempre mais casuais e imaginativos, fogem para longe e longe do protótipo
egípcio. É somente ao final do século XVIII que o retorno aconteceu.
Em princípio a aparência das esfinges são semelhantes, mas elas podem
se distinguir muito umas das outras, pela forma, pela posição, pelo
toucado e pelo papel que desempenham, segundo o contexto onde são
instaladas. O tipo mais freqüente é a esfinge agachada. Independente da
pose, penas as esfinges que portam o nemes, o toucado egípcio, pertencem
à egiptomania. ( Warmenbol, 1995:59) 32 O parnasianismo foi um movimento
poético-literário surgido na França, em 1866. Propõe uma poesia em
utilitarismo, exceto a busca da beleza. Ele tem por objetivo a perfeição
formal, fixa uma temática impessoal e
- 13.13
- Segundo se sabe, pela documentação disponível sobre a reforma da
Biblioteca Pública e relatos de cunho jornalísticos, Victor Silva, ocupa
a função de Diretor da Biblioteca Pública no período entre 1906 a
1922. 33. Ele foi, indubitavelmente, artífice e supervisor da decoração
feita no prédio, na reforma iniciada em 1919. Victor da Silva falece no
exercício desse posto, em 13 de dezembro, três meses após a inauguração
da sede nova Esse funcionário público, conforme alguns - um impertérrito
parnasiano 34 - nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de agosto de 1865. Ainda
jovem, ele viajou para a Europa e residiu vários meses em Paris. Depois
de trabalhar na Comissão de Limites Brasil-Bolívia, veio para o Rio
Grande do Sul, em 1897. No Estado, foi promotor público em Montenegro,
inspetor da 3a Região, funcionário da Secretaria do Interior do Estado e
comissário do Teatro S. Pedro.35 É possível entender, através do
discurso de Vitor Silva, na solenidade de inauguração do novo prédio,
sua identificação com os princípios positivistas orientadores das práticas
políticas do governo do Rio Grande do Sul. Essa condição, aliás, na época,
era fundamental para o exercício de cargos públicos neste Estado.36 As
palavras iniciais de Silva denotam sua concepção de História do Homem
como um processo de evolução determinado por leis imutáveis, a partir
dos primeiros traços da escrita ideográfica, talhados na pedra, que
levaria à descoberta do livro, à imortalidade do espírito humano e ao
progresso. Segundo Vitor Silva, a humanidade caminha com força irresistível
subordina-se ao positivismo filosófico e ao objetivismo científico. Ver:
CANDIDO, ª Do romantismo ao simbolismo. 8 ed., Rio de Janeiro, Difel,
1979. 33".... Victor Silva começou seu trabalho admirável na
Biblioteca Pública, em 1906, no segundo período do governo de Antonio
Augusto Borges de Medeiros (1863-1961) que se iniciara em 1898-1903 e
1903-1908. Quando Borges de Medeiros pretendeu candidatar-se para o
mandato de 1980-1913, os republicanos Joaquim Francisco de Assis Brasil
(1857-1938) e Fernando Abbott (1857-1924) entraram em dissidência,
fundando o Partido Republicano Democrático e lançando Abott como
candidato a Presidente, pois que o termo Governador só apareceria após a
Revolução de 1930. Habilmente, porém, Borges de Medeiros retirou sua
candidatura e lançou Carlos Barbosa Gonçalves (1849-1934), um elemento
altamente categorizado, médico formado no Rio de Janeiro que tinha
passado temporadas em hospitais da França e da Alemanha. Filho de
Pelotas, criado em Jaguarão, ali exerceu atividade profissional e, como
abastado fazendeiro, além de liderança política, venceu facilmente a
eleição para Presidente do Estado. Admitido como "cavalo do comissário",
todo o mundo imaginava que ele iria ser o que mais tarde se diria - um
"teleguiado". Todavia, foi simplesmente impressionante a sua
atuação na série de realizações marcadas de muita operosidade e
dinamismo. E através de sua determinação exaltada por Victor Silva, foi
votada a concorrência em 1910 para construir este edifício, onde, hoje,
se ergue a imponente Biblioteca Pública do Estado. (SILVEIRA,inBAKOS,1999:21)
34 SILVEIRA, C.F. In BAKOS, 1999:17 35 MARTINS, 1978:547 36 José de
Aguiar Montaury, o Intendente Municipal de Porto Alegre na época, como
Victor Silva, também procedia do Rio de Janeiro e governou a cidade em
consonância com os princípios positivistas, ao longo de 27 anos. Ver:
BAKOS, M.M., EDIPUC, 1996.
- 14.14
- para a fusão progressiva das sociedades. A coordenação dessa jornada
conduz à síntese universal das raças, das culturas e das instituições
políticas. Ela tem a tarefa de alcançar a perfeição moral que vem
realizando lentamente mas progressivamente o espírito do Livro com a força
do gênio que opera as grandes transformações na massa inconsciente.
Vitor Silva, em consonância com os ensinamentos de Augusto Comte, a quem
ele cita nesse momento da fala, considera a nossa alma como expressão da
sociedade. Ele inclusive se permite, no momento em que a alma nacional
festeja a data redentora de sua libertação política, em um surto espontâneo
de sua consciência, fazer uma homenagem à pessoa de Borges de
Medeiros37, Chefe do Partido da Pátria, a energia viva do civismo
brasileiro. Silva aponta o Presidente como o responsável pela organização
da Biblioteca, nesta forma majestosa: com uma riqueza artística, digna da
elevação mental de nossa sociedade. É importante mencionar o silêncio,
no discurso de Vitor Silva, sobre os detalhes orientais presentes na
decoração da Biblioteca, especialmente na sua própria sala. Em tom
semelhante ao artigo do Jornal A Federação comentado, a fala do Diretor
da Biblioteca aponta e valoriza as decorações de estilo clássicos e
literatura imortalizada no mundo ocidental do prédio. Todos os elementos
asseguram, segundo suas palavras; que a Biblioteca Pública do Estado do
Rio Grande do Sul se destaque vantajosamente entre as suas congêneres do
Brasil. Vitor Silva relata as dificuldades enfrentadas na ampliação do
edifício e a transformação radical de seu interior. Ele valoriza a
experiência e a dedicação dos engenheiros Coelho Parreira e Theophilo
de Barros. Aponta Fernando Schlater, como o autor da pintura decorativa, e
Parreira e Theophilo de Barros, como os escultores dos mármores e
bronzes. Ele conclui que foram excelentes artistas que, animados sempre de
um sentimento fulgurante de beleza, criaram nestas salas concepções artísticas
de encantadora visualidade. A omissão, no discurso de Vitor Silva, de
opinião acerca dos motivos decorativos da Biblioteca e, especialmente, os
de origem exótica é lamentável, face as possibilidades de compreensão
que isso traria para a construção daquele tipo de cenário em uma das
instituições públicas mais prestigiadas, no Rio Grande do Sul. Essa
falta de referência, fica ressaltada pela leitura da única obra literária
publicada pelo autor: As victorias, onde se observa a recorrência a temáticas
que evocam aquelas criações. 37 Presidente do Estado do Rio Grande do
Sul, de 1898-1908 e de 1913-27.
- 15.15
- O livro Victorias, surgido postumamente, pois Silva recusou-se a editá-lo,
mesmo sendo uma condição para a concorrência à ambicionada vaga na
Academia Brasileira de Letras, apresenta três poemas que mencionam a
esfinge e outros - Alucinação, Ideal - referem elementos do Egito e do
oriente: como o Sinai e a terra de Canaã, o rio Nilo e as múmias.38 As
referências à esfinge como esbelta e branca e a relação que ele
estabelece entre a imagem, o terror de um sagrado mistério e o riso,
evocam a simbologia39 dessa representação na cultura grega. No último
poema do seu livro - Esfinge - cujo terceto foi transcrito para o soclo da
estátua na Biblioteca Pública, Silva faz uma relação explícita entre
essa imagem e o contexto nilótico. Esfinge No delta acocorada, entre as
verdes lianas, Surge num mudo assombro a Esfinge de granito, E atenta, o
olhar parado, espreita as caravanas, Que cruzam na extensão das áreas do
Egito. Tal num sonho de pedra, imoto, o horrendo mito, Lembrando as tradições
das raças soberanas, Parece ouvir com espanto a rolar no infinito Os séculos
que vão com as gerações humanas. Impérios colossais, Potestades
divinas, Patriarcas e reis de infinda majestade, Tudo desfez-se em pó e
esboroou-se em ruínas... Só a esfinge não morre, e erguendo o estranho
porte, Guarda, eterna, do caos das origens e da idade O enigma da vida e o
mistério da morte. A evocação do Nilo, no poema Sonho de canibal, é
feita com o recurso ao tropos, o que incita a análises de cunho
interdisciplinar, entre a literatura e a história. Leia-se, por exemplo,
a referência ao rio Egípcio como Amplo mar de sangue invade a Núbia inteira. 38 SILVA,V.
Victórias. Porto Alegre, Livraria do Globo, 1924. 39
Flávio Loureiro Chaves relacionou, em entrevista informal, a obra poética
de Victor Silva ao simbolismo no Rio Grande do Sul.
- 16.16
- Como foi dito, Vitor Silva contratou Fernando Schlatter 40, conhecido na
época como o pintor dos motivos bárbaros, para a pintura decorativa das
paredes e dos tetos da Biblioteca. O artista, especializado na Itália em
pintura de afrescos, chegou ao Brasil em 1899, morou um ano em Ijuí,
cidade do interior do Rio Grande do Sul, e depois estabeleceu-se
definitivamente em Porto Alegre. Tornou-se conhecido e admirado pelo
trabalho de pintura que realizou na Prefeitura e no interior da Biblioteca
Pública da capital do Estado, das Igrejas das Dores, São José, Rio
Pardo, Bom Príncipe e Estrela e de inúmeras mansões da Capital.
Notabilizou-se pela capacidade de criação, em telas a óleo, das
paisagens das montanhas bávaras, de lagos plácidos e de casas tirolesas.
Sabe-se que Schlatter teria copiado de um livro específico41 os elementos
egípcios usados na decoração do Gabinete do Diretor, e teria sido
orientado, na escolha das imagens e na composição de conjuntos artísticos,
pelo gosto dado pelo administrador da casa, Vitor Silva.42 Considerações
Finais Cabe apresentar uma conclusão em dois sentidos sobre esse resgate
da gênese da decoração egípcia na Biblioteca. Um voltado para o silêncio
intrigante acerca dos enfeites43 presentes, na reportagem de A Federação
sobre a inauguração do prédio e também no discurso de Victor Silva, na
ocasião. Eles podem ter diversas razões. Entre elas se inclui o pouco
gosto pessoal pelas decorações de cunho oriental dos enunciadores das
falas, a ignorância deles a respeito dos elementos orientais, fato que,
poderia levar à omissão na descrição e/ou valorização do ambiente,
até a pouca valorização da realidade oriental, nesse momento histórico,
o que não era incomum. 44 O silêncio também poderia significar uma
tentativa de desvio do olhar sobre a sociedade egípcia naquele momento
histórico, especialmente, quando se questionava, de forma inusitada, o
domínio e os valores do mundo ocidental, no oriente. O cenário do
conflito era o Cairo, onde explodia com violência a 40 Fernando Schlatter,
nascido em Lindau, na Bavária, chegou ao Brasil, em 1899. 41 Este livro
foi doado à Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul pelo filho
do artista, residente no Rio de Janeiro, no decorrer do período de Cleci
Grandi no posto de Diretora da Biblioteca. DOLMETSCH, H.Der
Ornamentenschatz ein Musterbuch Stilvoller Ornamente aus Allen
Kunstepochen. 85 Tafeln mit 1200 meist farbigen abbildungen erläuterndem
Text. Zweite auflage..Stuttgart: Verlag Julius Hoffmann, 1889. 42 O livro
apresenta, além das egípcias, decorações assírias, chinesas,
japonesas, indianas, persas, romanas, pompeianas, visigodas, celtas,
bizantinas, românicas, góticas e da Renascença alemã, francesa e
italiana. 43 ORLANDI. ,1993:12 44 SAID,
- 17.17
- chamada Questão Egípcia. Esta consistia, em síntese, no conflito
aberto pelos nacionalistas do país na busca de um fim ao protetorado britânico
naquele território. Como diariamente A Federação noticiava sobre esses
episódios, talvez a clima eufórico da inauguração da Biblioteca
devesse ser mantido em detrimento da valorização dos elementos orientais
que remetiam a questões geradoras de preocupações. Todas essas suposições
dificilmente serão pontuadas no sentido de esclarecedoras para os
silenciamentos assinalados. Victor Silva certamente tinha conhecimento dos
símbolos da sociedade egípcia, fato que se deduz da sua obra poética.
Isto não significa que ele tenha desenvolvido algum laço afetivo ou de
apreço por essa fase do passado histórico e/ou algum aspecto específico
da cultura oriental. A sua apropriação de elementos simbólicos do
antigo Egito e o possível estímulo que ele deu a Schlater para sua
utilização na decoração da sala da Diretoria bem podem ter apenas
fundamentações de ordem estética. No outro sentido da conclusão,
pode-se, em princípio, questionar se essa decoração pode ser vista como
uma prática de egiptomania, embora teoricamente ela possa ser
caracterizada como tal. A partir da apropriação do pensamento de
Giuseppina Grammatico Amari sobre a inexistência de uma tradição clássica
chilena45, pode-se perguntar sobre a existência da prática da
egiptomania no Brasil, nos moldes, em que ela ocorre, por exemplo, em países
europeus como Itália, França e Inglaterra. Nesse sentido, futuras
pesquisas poderão informar se o que se observa, neste país, são apenas
expressões individuais de interesse pela forma, técnica e/ou admiração
pelo Egito antigo ou se houve, em algum momento, manifestação mais
sistemática. Algumas práticas individuais, decorrentes da posição
social de seus mentores, foram tornadas públicas e divulgadas. É o caso,
aqui apresentado, de Victor Silva - intelectual, poeta e responsável
pelas escolhas temáticas na remodelação da Biblioteca Pública. Apenas
através da pesquisa e do exame de outras situações, como essa, que
ainda devem ser resgatadas, pode-se sugerir uma conclusão mais pontual
sobre os sentidos dos novos olhares brasileiros sobre o antigo Egito. O
fio condutor deste artigo foi o encaminhamento de pesquisa e discussão
mais amplas sobre práticas de egiptomania no Rio Grande do Sul. Estudos
desse tipo, já feitos em outros países, dentro e fora do mundo íbero-
45 Les confiesso que no sé si es posible hablar de uma tradición clásica
chilena. (...) No obstante, a comienzos de este siglo, gracias a la
amplitud de miras de algunos "iluminados" y también gracias a
la fortuna, brotaron pequeños focos aislados, y los jóvenes más
abiertos y sensibles fueron atraídos por ellos.(AMARI,G.G.1998:5)
- 18.18
- americano, permitiram uma leitura que, diferentemente de um exercício
formal, buscou, através do tortuoso caminho entre a ciência e a imaginação,
a influência do oriente no imaginário ocidental. Agradeço a atenção
recebida da Prof. Dra. Maria Lucia Bastos Kern, colega na PUCRS, e do Dr.
Flávio Loureiro Chaves, confrade do IHGRS, sobre dois aspectos abordados
de forma singela neste texto: respectivamente a arte e a literatura, no
Rio Grande do Sul. Outrossim, é mister informar que as idéias aqui
apresentadas são da minha inteira responsabilidade. BIBLIOGRAFIA AMARI,
G.G.(1998) La tradición clásica em Chile. Boletim Latino-americano de
Estudos Clássicos, Belo Horizonte: Asociación Argentina de Estudios Clássicos,
Ano VI, n.6. ARGAN,G. C. (1992) História da arte como história da cidade
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escritores que dirigiram a Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: EDIPUC. ---------------Porto Alegre e seus eternos
intendentes.(1996) Porto Alegre: EDIPUC. --------------& BARRIOS,A
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Scwarcz. SILVA, Vitor. (1922) Discurso.In.: Commemorações em honra do
Centenário da Independência do Brasil.Porto Alegre: Of. Gr. D'Federação.
ESTE ARTIGO ESTÁ PUBLICADO NA REVISTA DE ESTUDOS IBEROAMERICANOS - PUCRS
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