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A CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA DO BTL.SUEZ |
Artigo que encontrei navegando pela Internet - Theodoro
12/02/2008
RESUMO
A História do Batalhão Suez ainda é desconhecida do grande público e, inclusive,
dentro da própria corporação militar. A partir dos testemunhos orais e de
depoimentos escritos, este trabalho traz para as luzes o cotidiano de alguns
militares brasileiros que participaram da I FENU (Primeira Força de Emergência
das Nações Unidas, UNEF, em inglês, First United Nations Emergency Force), entre
os anos de 1957 a 1967, no Oriente Médio. Pretendemos retratar com maior ênfase
a História e a memória dos mais de 20 (vinte) piauienses que participaram dessa
Missão de Paz. Ainda que de maneira fragmentada, este produto da História Oral é
relevante para a análise do discurso e dos eventos narrados por cada um deles
sobre a Missão.
Palavras-chave: Batalhão Suez, História Militar, História Oral, Oriente Médio,
ONU.
A partir dos testemunhos orais e de depoimentos escritos, este trabalho traz
para as luzes o cotidiano de militares brasileiros que participaram da I FENU
(Primeira Força de Emergência das Nações Unidas, UNEF, em inglês, First United
Nations Emergency Force), entre os anos de 1957 a 1967, no Oriente Médio.
Pretendemos retratar com maior ênfase a História e a memória dos mais de 20
(vinte) piauienses que participaram dessa Missão de Paz em diferentes
contingentes postada na fronteira do Egito com Israel ao longo de dez anos da
Missão. Entretanto, para fins deste encontro, apresentarei brevemente apenas
algumas impressões iniciais retiradas do conjunto dos depoimentos realizados com
praças e oficiais brasileiros.
Ainda na fase de realização das entrevistas fazia várias anotações de suas
falas, tentando por no papel o máximo das frases que surgiam nas suas
narrativas. Esse caderno de campo me foi de grande utilidade para a conferência
do conteúdo das entrevistas. Serviram como guia para algumas ilações enquanto as
fitas eram transcritas. Ler e relê-las enquanto as entrevistas ainda estavam
frescas na lembrança ajudou no trabalho de elaboração do texto escrito.
O conjunto das 17 entrevistas orais consagra de forma pioneira a montagem do
primeiro catálogo de depoimentos orais somente sobre o Batalhão Suez. Este
acervo de gravações é o primeiro trabalho persistente focado sobre o tema
específico com entrevistas realizado no país. Há depoimentos temáticos e
histórias de vida no campo da História Oral. Ainda que de maneira fragmentada,
este produto da História Oral é relevante para a análise do discurso e dos
eventos narrados por cada um deles sobre a Missão. Uma cópia da transcrição -
textualização ou a apresentação por escrito da entrevista - foi entregue aos
depoentes "para pequenas correções de datas, nomes de pessoas ou locais".
No momento das entrevistas percorremos um itinerário tortuoso, uma vez que nem
todos os piauienses residem em Teresina. Assim, tivemos que nos deslocar para
outras cidades para recolher fragmentos da memória destes veteranos. Entretanto,
foi um trabalho interessante, pois pudemos trazer para o proscênio novos atores
políticos, novos cenários, e novos olhares sobre a participação brasileira na
primeira força de emergência da ONU. Observamos neste grupo de veteranos antes
excluídos dos trabalhos acadêmicos, uma grande capacidade de narrar a sua
participação. A cada um deles, a quem muito sou grato. Para realizar o trabalho,
elaborei um roteiro para as entrevistas, mas não selecionei os entrevistados, a
cada um que sabia e conhecia fui atrás para realizar as entrevistas. Assim,
recolhi um farto material iconográfico com cada um deles.
Esta abordagem é sobre um objeto múltiplo. A partir das narrativas e dos
depoimentos escritos tentaremos fazer uma aproximação do real ou de suas
representações. Em face do desprestígio a que foram relegados e a muitas
imprecisões e divergências que estamos enfrentando, este trabalho aparece então
como a possibilidade de uma contra-história. Podemos dizer que dessa forma, ela
termina por "instaurar também o diálogo sobre as controvérsias" que cercam a
Missão. Esperamos, enfrentando, com o olhar do historiador, recuperar a maior
quantidade de fragmentos da passagem de alguns brasileiros nos primeiros
momentos da controvérsia de um dos temas contemporâneos de maior relevância no
debate internacional. Antes deste trabalho poderíamos mesmo dizer que os
veteranos de Suez não possuíam uma história: eram vistos como esquecidos. Na
historiografia brasileira não há trabalhos específicos aprofundados sobre a
História do Batalhão Suez. Há mesmo quem duvide que eles ganharam o Prêmio Nobel
da Paz. Ao narrar suas passagens pelo Batalhão Suez pude notar que ali estava em
prática aquilo que Thompson afirmou como sendo uma "terapia da "liberação da
memória".
Em suma, a partir deste estudo buscamos oferecer documentos "novos" através da
memória das camadas subalternas do batalhão que tomaram parte na Missão Suez.
Essas camadas populares do exército brasileiro são atores comumente ausentes
quando se assentam os tijolos na construção da história oficial. Aí, destacam-se
notadamente as figuras dominantes. O restante fica esquecido, esquecido naquilo
que Montenegro chama de os "esconderijos da memória". Esta história está
guardada nas milhares de imagens, cartões-postais, cartas e diários de viagem.
Enfim, está guardada nos "esconderijos de memória" dos milhares de
sobreviventes.
O sargento Coimbra que serviu entre 1966 e 1967 foi a primeira pessoa sondada no
momento de realização das entrevistas (o "ponto zero" no dizer de Sebe), depois
dele, pude chegar aos demais. Desses contatos, nosso projeto montou uma
considerável "colônia" de entrevistados. Ou seja, "um grupo de atores que
pertencem a uma "comunidade de destino", com um mesmo padrão de afinidades
históricas, e com experiências que possam ser diferenciadas, dando vida à
análise que foge do biográfico". As entrevistas ocorreram em diversas situações,
ora eram compartilhadas com mais de um depoente, ora eram solitárias. Seus
depoimentos foram tomados em mais de uma oportunidade com cada um deles e,
embora, quase sempre os velhos álbuns estivessem por perto eles não serviram
necessariamente para estimular ou basear os relatos; as entrevistas foram
realizadas em lugares escolhidos pelos depoentes.
A entrega dos depoimentos transcritos para cada um deles serviu para que se
fizesse a chamada "conferência". Embora nem todos os oralistas concordem com
esse método, ele é, sem dúvida, um ponto importante da verificação dos
procedimentos. Para Sebe, "este, por excelência, é o instante de negociação
entre o que se publica ou não, os acertos de datas, falhas da memória."
Ultrapassada a primeira fase marcada pelo momento da constituição de um
documento; o estamos presentemente numa outra fase que é o da análise do produto
das entrevistas.
De posse das transcrições das entrevistas com as poucas correções efetuadas
começamos agora a fase de exploração dos aspectos da seletividade da memória e
da "correção" por escrito daquilo que a emoção deixou transparecer na fala.
Observamos que as narrativas pessoais de alguns deles contêm versões "muitas
vezes comprometedoras e incômodas" que chegam a questionar fundo a atuação, a
ética, a disciplina e a hierarquia de um grupamento militar, especialmente em se
tratando de uma Força de Paz.
A HISTÓRIA ORAL DO BATALHÃO SUEZ
Iniciamos nosso trabalho de entrevistas entre os fins de 2003 e início de 2004.
A partir daí oferecemos a oportunidade a civis engajados, soldados, cabos e
sargentos, enfim, praças de terem as suas histórias. Estes membros do exército
que dentro da hierarquia do exército, não pertence à elite dominante, quase
sempre são esquecidos dos cenários de primeira linha e, portanto, são os
excluídos das pretensões de "estudos oficiais". Aqui, não queremos aludir à uma
história oficial e outra não-oficial - mas colocar os praças que serviram no
Batalhão Suez dentro de um universo próprio que exploramos com a metodologia da
História oral. Enfim, estes atores também passam a ser assunto de discussão
acadêmica.
O trabalho tem exigido uma metodologia que necessita de outras fontes,
especialmente, as escritas. Tive que realizar um longo diálogo com textos e
livros sobre o uso da técnica e metodologia para observar as formas de
abordagens, de aproveitamento do material que eu havia coletado, bem como na
forma de condução dos resultados. Como foram traçadas as diretrizes da pesquisa,
os problemas teóricos, as trajetórias dos entrevistados, como eram explorados os
discursos e os "esquecimentos" até porque estes, às vezes, tem um significado
social. Junto a análise destes procedimentos utilizei-me também de livros sobre
a Guerra dos Seis Dias e sobre o conflito de Suez, além dos depoimentos escritos
que recebi ao longo da pesquisa elaborados por veteranos de outros estados do
Brasil. Aqui o intuito era checar algumas informações e dados fornecidos pelos
piauienses. Como tantos outros pesquisadores, tenho enfrentado alguns problemas
concretos inerentes de uma primeira pesquisa de vulto com a metodologia da
história Oral que realizei até o momento. Um dos principais deles é o da
subjetividade dos entrevistados.
A História Oral tem um caráter plural e democrático. Ela é um campo de saber
novo. Com uma metodologia que traça a História individual ou de grupos e que,
neste caso específico, nos convida a pensar na versão de cada um destes cidadãos
comuns. Ela serve a inúmeras áreas do território das humanidades, o que traz
para si um grande desafio operacional e metodológico.
Do ponto de vista teórico, existe uma diversidade conceitual e metodológica
sobre a História Oral. Sem querer adentrar no campo e das discussões teóricas e
metodológicas, este trabalho se utiliza das narrativas trabalhadas em diálogo
com outros tipos de códigos, às vezes, equipadas com informações contraditórias
aos depoimentos. Neste trabalho de História Oral, as narrativas dos depoentes
não têm um poder de força exclusivo, elas estão aliadas a outras formas
analíticas e fontes diversas. Enfim, a oralidade é um recurso a mais no trabalho
para o resgate a que nos propomos.
Nosso interesse não é necessariamente "preencher lacunas". Elas existem e são
muitas, deixadas tanto pelos documentos como pelas fontes escritas e pela
história oficiais. Ele é, mesmo sem o querer precipuamente, uma reparação. Esta
reparação acontece no momento em que o Batalhão Suez está prestes a completar 50
anos de sua criação. O Batalhão Suez é um tema pouco conhecido e, portanto,
pouco explorado. A participação de cada um na Missão foi o assunto principal que
me aproximou dos entrevistados. Assim, procurei explorar ao máximo da
experiência de cada um no intervalo de pouco mais de um ano que passaram na
Faixa de Gaza, suas vidas, suas decepções, suas percepções sobre a cultura, as
cidades, o conflito e as relações tanto com os colegas brasileiros como de
outros países. Uma vez transcritos, os conteúdo das entrevistas, agora eles
ganham o status de documentos sobre as vivências e experiências únicas destes
entrevistados.
Enfim, montamos um acervo com coleções de entrevistas unidas por um tema
central, mas salpicado por assuntos diversos. Embora esquecida e relegada pelo
EB, encontramos uma memória relativamente bem preservada pelos ainda muitos
sobreviventes. Para esta apresentação escolhi fragmentos de uma memória focada
no dia-a-dia dos acampamentos, no árduo trabalho das patrulhas e nas alegrias
dos passeios. Mas também há a memória focada na Guerra, na saudade, na ausência
da família e amigos.
A pesquisa ainda não está totalmente aprofundada, entretanto, já podemos
observar algumas indicações, como por exemplo: o conteúdo das entrevistas, de
uma forma geral, estampa julgamentos de valor sobre as sociedades do deserto.
Analisando os conteúdos das entrevistas podemos montar alguns temas e elaborar
algumas idéias sobre o nosso assunto que nos tem despertado a cada dia maior
interesse com as descobertas que fazemos. Entretanto, neste encontro ainda não
podemos divulgar maioria delas, pois ainda estamos na fase exploratória da
pesquisa.
Queremos no final da pesquisa poder oferecer para cada um deles um universo
ampliado no que concerne a quantidade de informações sobre a sua participação na
Missão, mas também no antes e depois dela. Como trabalhamos com relatos de
vários indivíduos que participaram dos vários contingentes, o limite, abrimos a
possibilidade de leitura do social, através de múltiplas versões individuais,
permitindo reconstruir, a história e a trajetória deste grupo social.
ANTECEDENTES HISTÓRICOS E A CRISE NO ORIENTE MÉDIO (1947 - 1956)
Algumas informações gerais
À guisa de uma introdução entendo ser necessário um pequeno recuo na História
para estabelecer o pano de fundo que levou milhares de militares brasileiros à
fronteira do Egito com Israel, precisamente na Faixa de Gaza. Não pretendemos
realizar aqui qualquer historicização de forma aprofundada das causas do
conflito, apenas apresentá-las en passant. É deveras impreciso apontar um início
ou uma causa determinante para o conflito árabe-israelense. Ele pode ser, entre
outros, apontado mais recentemente com a partilha da Palestina. Remontando a
este evento dizemos que encerrado a Segunda Guerra mundial, os ingleses
retiraram-se da região ficando a Organização das Nações Unidas (ONU) a tarefa de
solucionar os problemas ali existentes. Sem uma consulta prévia aos árabes
palestinos, em 1947, a ONU vota a favor da divisão da Palestina em dois Estados:
um judeu e outro árabe palestino.
Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion proclama o Estado de Israel, tornando-se
seu primeiro-ministro. Com a criação do Estado de Israel, os judeus retornam à
Palestina, território de onde tinham sido expulsos 2 mil anos antes. Sem dúvida,
a sua fundação gera uma das mais importantes disputas territoriais do mundo,
motivo, ainda hoje, de complexas negociações de paz, envolvendo a ONU,
israelenses, palestinos, grupos armados, e os Estados árabes vizinhos.
Em represália à criação de Israel, alguns países árabes enviam tropas para a
região, originando o que se convencionou denominar de a Primeira Guerra
Árabe-israelense. A guerra termina em janeiro de 1949, com a vitória de Israel,
que passa a controlar 75% do território da Palestina, um terço a mais do que o
determinado pela ONU no momento da partilha. O restante da área da Cisjordânia,
território à margem oeste do Rio Jordão, é incorporado à Jordânia em 1950,
também como resultado da guerra. Intimidados, cerca de 800 mil árabes fogem de
Israel. A conquista jordaniana incluiu também o setor oriental de Jerusalém, que
se torna uma cidade dividida, com o setor ocidental ocupado pelos judeus.
Um outro ponto de inflexão de importância para a formação do Batalhão Suez foi a
nacionalização do canal de Suez em 1956. Aí configura-se uma delicada situação
que envolvia os interesses de grandes potências, Grã-Bretanha, França, Estados
Unidos e União Soviética. De uma forma ou de outra, essas potências desejavam
manter sua influência no Oriente Médio por interesses políticos, econômicos e
militares. Em 29 de outubro de 1956, Israel invadiu a Faixa de Gaza e a
Península do Sinai, avançando em direção ao Canal, com o pretexto de eliminar as
bases dos comandos egípcios, instaladas na região. Várias potências ofereceram
contingentes, mas somente dez foram escolhidas por satisfazerem uma série de
condições exigidas pela ONU: BRASIL, CANADÁ, COLÔMBIA, DINAMARCA, FINLÂNDIA,
ÍNDIA, INDONÉSIA, IUGOSLÁVIA, NORUEGA, E SUÉCIA .
Em virtude da recusa do Egito de retirar suas tropas do Canal de Suez, o comando
franco-britânico desembarcou tropas em Porto Said e Porto Foad. Com o início do
conflito a Assembléia Geral da ONU, que agindo com rapidez, aprovou uma
Resolução para a imediata cessação das hostilidades. Entretanto, faltava-lhe
respaldo para fazer cumprir tal decisão. Assim, no dia 5 de novembro, o
Secretário-Geral da ONU, DAG HAMMARSKJOLD, propôs a criação de uma Força
Internacional de Emergência, para garantir o cumprimento da Resolução. A tropa
da ONU passou a denominar-se "UNEF - UNITED NATIONS EMERGENCE FORCE" - (Força de
Emergência das Nações Unidas - FENU, em português).
A partir daí Iniciaram-se as negociações com a finalidade de estabelecer os
princípios norteadores da sua organização, a efetivo, a missão, o recrutamento e
os recursos financeiros da Força Multinacional, capaz de, sem fazer uso da
violência, garantir o cessar-fogo e o respeito às Resoluções da
Assembléia-Geral.
Com o cessar da luta no Egito, no dia 07 de novembro, abriu-se espaço para o
desembarque dos Boinas Azuis, como são conhecidos os soldados da ONU. As
primeiras unidades da Força de Emergência das Nações Unidas chegaram a 15 de
novembro de 1956 e, uma semana depois, franceses e britânicos deixaram a cidade
de Porto Said. A Assembléia Geral da ONU, de acordo com a resolução "União pela
Paz", estabeleceu uma zona de neutralidade entre Israel e Egito que seria
ocupada pelas forças internacionais.
A Missão da UNEF no deserto do Sinai
A História do Batalhão Suez ainda é desconhecida do grande público e, inclusive,
dentro da própria corporação militar. Meu interesse pelo tema não é recente,
remonta a alguns anos, muitos anos, desde quando, ainda pequeno, assistia às
projeções de slides realizadas publicamente pelo sargento Coimbra, logo após o
seu retorno da Missão, nos idos de 1970. As exibições eram feitas no jardim de
sua casa ou mesmo no meio da rua onde morávamos. Nessas exibições o interesse
era muito grande, medido pela quantidade de pessoas que apareciam para assistir
as projeções que eram sempre acompanhadas da descrição dos lugares e das pessoas
que apareciam nas imagens.
Em 2004 me encontrei com o antigo vizinho, hoje militar aposentado, e questionei
acerca de seu acervo. Ele gentilmente me cedeu todos os slides e cartões postais
que possui guardado. São mais de mil fotogramas, muitos estão em estado
irreversível de deterioração, entretanto, há várias centenas muito bem
conservados. Ele também se prontificou a conceder entrevistas e me ajudou a
encontrar outros veteranos de Suez. Seu Coimbra não apenas gosta de falar sobre
sua participação como ainda demonstra grande vivacidade e um discurso eloqüente
sobre o tema. Aliás uma característica dos demais narradores.
Somente nas conversas preliminares fiquei sabendo que ele não foi o único
piauiense que viajou ao Egito e durante uma solenidade militar em Teresina em
que participamos, ele pode conhecer outros que também viajaram na Missão. Todos
estes também dispunham de acervos muito ricos de slides, cartões e fotografias.
Também encontrei um diário de viagem muito bem conservado e detalhado da
experiência na Missão.
Como nesta pesquisa trabalhamos com relatos orais de vida de personagens
procedentes das mais diferentes camadas sociais, esperamos que as aspirações, as
percepções e as visões de mundo sobre si, sobre a Missão e sobre o Oriente sejam
também diferentes, provavelmente divergentes ou até conflitantes. Algumas
questões se colocaram para mim enquanto um curioso daquele evento: como era para
eles, deixar uma pequena e pacata Teresina e "ganhar o mundo" desconhecido?;
quais eram as referências sobre o Oriente e sobre o conflito árabe-israelense?;
quais eram as condições de vida, de trabalho e de saúde deles e dos habitantes
do deserto?; como era o dia-a-dia no interior dos acampamentos e nas tarefas de
guarda da Fronteira Internacional?; quais eram as suas impressões acerca da
cultura autóctone e dos outros batalhões?
Como se disse antes, a missão do Batalhão Suez era manter a paz e a segurança na
região da Faixa de Gaza e na Linha de Demarcação do Armistício (ADL). A linha de
Demarcação do Armistício, era uma linha que partindo de Gaza ia até Rafah, daí
infletindo-se para o Sul, na direção do Golfo de Akaba. Além de garantir e
supervisionar a cessação das hostilidades entre Israel e Egito, a Assembléia
Geral da ONU atribuiu outras missões à FENU, como a de assegurar o cumprimento
da atual e das futuras Resoluções das Nações Unidas; supervisionar e garantir a
retirada das tropas que operavam em solo egípcio; interpor-se entre Egito e
Israel, na linha da fronteira, a fim de impedir os choques armados na região
compreendida entre o Canal de Suez e a Linha de Armistício (ADL, sigla em inglês
para Advisory Demarcation Line)entre Israel e o Egito fixada na mesma Resolução.
Dessa forma, a faixa de Gaza foi toda ocupada pelas tropas desses países, que
realizavam ações de patrulhamento com tropa motorizada e mecanizada.
O planejamento e a preparação no Brasil
Pelo decreto legislativo n. º 61, de 1956, o Brasil contribuiu com um
contingente militar do valor de um Batalhão independente integrando a Força
Internacional de Emergência, instituída em conseqüência da referida Resolução de
7 de novembro de 1956, O primeiro contingente brasileiro a seguir para o Egito
foi composto por soldados já incorporados e servindo ao Exército (EB). Mas
também foi adotado o sistema de convocação de reservistas que, depois de
selecionados, serviriam à Força pelo prazo de um ano. Os efetivos eram
estruturados no 2º Regimento de Infantaria (RI), Rio de Janeiro, em São Paulo,
Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte. Isso deu ao Batalhão uma constituição
nacional. Entre os mais de 6300 brasileiros havia pouco mais de vinte
piauienses.
Aqueles contingentes organizados à base de reservistas voluntários, passavam por
um período curto de preparação, que visava readaptá-los à vida militar. Dessa
forma, foram ministradas sessões de instrução para atualizá-los e enquadrá-los,
durante a permanência na missão. A cada seis meses, o pessoal era substituído em
quantidade de valor igual à metade do efetivo. Isso permitia a permanência dos
voluntários na área por um período de ano, e, em tese, evitando-se a quebra do
padrão de eficiência da tropa. Inicialmente, essa operação era realizada pelos
navios de transporte da Marinha, posteriormente, passou a ser encargo da Força
Aérea Brasileira.
A vida no deserto
De acordo com as narrativas coletadas, no início da Missão, a vida no deserto
era monótona, isso por que o soldado passava de 2 a 5 meses basicamente
patrulhando a imensidão de areia. Isso provocava um estado de angústia que teria
acometido alguns soldados e determinava, por vezes, os seus retornos ao Brasil.
Stans Zouain, cabixaba que participou da UNEF em 1966, chama a este estado
mental que acometia alguns praças de "alopragens".
O Exército brasileiro, entretanto, procurou desenvolver algumas ações com vistas
a elevar o ânimo do combatente e dar-lhe mais determinação no cumprimento da
missão recebida. Segundo os relatos foram providenciadas algumas modificações
importantes, especialmente quanto à alimentação, moradia e diversão. Dessa
forma, procurou-se ter um suprimento alimentar de boa qualidade. O Batalhão
recebia reforço de rancho em gêneros não perecíveis, tais como arroz, feijão e
açúcar, mas a maioria era fornecida pela FENU. Gradativamente foi feita a
substituição das barracas de lona por alojamentos montados em armações de
madeira. Providenciou-se ainda a exibição de cinema diário com filmes falados em
inglês e a apresentação de shows, além da realização de confraternização e de
intercâmbio entre os diversos batalhões, em especial com os canadenses e os
suecos. Havia ainda uma cantina sortida com biscoitos, chocolates, bebidas e
outros artigos que permitiriam dar um maior conforto à tropa.
As competições esportivas entre os batalhões estrangeiros estimulavam o
crescimento do espírito coletivo. Eram realizadas disputas de vôlei, basquete,
natação, xadrez, atletismo, tiro e futebol. Há quem afirme que com o passar do
tempo o esporte na FENU dava prestígio, assim, o Brasil teria adotado também uma
política de seleção de voluntários atletas, visando tornar mais forte as equipes
nas competições realizadas entre os batalhões.
Nos acervos fotográficos que tivemos acesso com os veteranos pudemos observar
que o uniforme que usavam na Missão era diferente do adotado no Brasil. Isso se
deveu em face de que o fardamento e o equipamento brasileiros, inicialmente
deixaram muito a desejar, pois não eram adequados ao emprego no deserto. As
condições adversas do ambiente operacional impunham um desgaste muito acentuado
e rápido ao material oriundo do Brasil. Posteriormente, este problema foi
solucionado com o emprego de material estrangeiro.
Vale dizer que de três em três meses de missão, o militar tinha o direito de uma
semana de dispensa. Essas dispensas-férias poderiam ser passadas no próprio
Oriente Médio, na Europa ou no Brasil. Elas eram denominadas de Leaves. A ONU
mantinha ainda Centros de Licença no Cairo, Alexandria e em Beirute, onde os
militares podiam usufruir de hospedagem em hotéis, refeições grátis e de
assistência médica. Como se disse antes, tais medidas visavam eliminar a rotina
diária e revigoravam o combatente para o cumprimento de suas tarefas. O Serviço
Social da ONU programava visitas ao Cairo, Alexandria, Luxor, El Alambin,
Beirute, Jerusalém, Monte Sinai. Outros lugares poderiam ser visitados, no
entanto, nesses casos, as despesas corriam por conta do interessado. O EB também
prestava assistência religiosa à tropa, através de um capelão militar. Assim,
procurava manter alguns costumes e tradições culturais do povo brasileiro em
solo do Oriente Médio.
O trabalho na ADL
O Batalhão Suez se incumbia de variadas missões de guarda, patrulha, observação
e vigilância da área determinada pela ONU. Dentro desse quadro, o Batalhão
Brasileiro recebeu missões diversas. Na LDA vigiava 32 Km, com duas Companhias (Cias)de
Fuzileiros. A rotina da missão de paz resumia-se em vigiar o "front" com vários
postos de observação com sentinelas em pontos estratégicos e espaçados e
pequenas patrulhas motorizadas durante o dia. A noite as patrulhas eram a pé.
Segundo informações, cada pelotão fornecia duas patrulhas, uma das 18 horas às
24 horas e a outra de meia-noite às 06 horas da manhã. Esse serviço de patrulha
a pé era pesado. Cada patrulha tinha o itinerário distante caminhava sobre a
areia em formação por quase, ininterruptamente, 6 horas consecutivas, no verão
ou no inverno. O patrulheiro tirava esse serviço, numa média de 3 vezes por
semana. Uma terceira Cia. de fuzileiros servia no Quartel General (QG) do
Batalhão Brasileiro e guarnecia as suas instalações. Finalmente, havia a
Companhia de Comando e Serviços (CCS) - cujo Posto de Comando (PC) era
justaposto ao do Batalhão Brasileiro. Era a responsável pela logística do
Batalhão. Esta Cia era composta com o pessoal da área de saúde, mecânicos,
motoristas, burocratas, e outras especialidades. Esse era a estrutura
organizacional e de funcionamento do batalhão Suez.
Cabe aqui uma pequena observação acerca do papel e das responsabilidades
entregues aos brasileiros na Missão. O que nos depoimentos - orais e escritos -
é descrito como "a eficiência brasileira" na verdade representava uma carga de
serviços e responsabilidades muito grande. Senão vejamos: a quota de guarda de
fronteira na L.D.A. era maior, o dobro, que as entregues aos Suecos e Indianos.
Outro detalhe esclarecedor da exploração a que estavam submetidos os brasileiros
é o fato de que "enquanto tínhamos um efetivo menor, 425 homens. Suecos e
Indianos tinham 1.300 homens cada", e, afirmam com orgulho que "nenhuma ordem
deixou de ser cumprida pelo Brasil". O teatro de operações oferecia condições
climáticas adversas temperaturas superiores a 45º C durante o dia e frio intenso
durante a noite, com tempestades de mosca e de areia e a escassez de água. Nesse
meio insinuou-se o espírito de sacrifício do soldado brasileiro, evidenciado em
várias oportunidades e nas diversas missões realizadas. Se as ligações entre o
comando da FENU e o Batalhão Suez eram cordiais, entretanto elas não chegavam a
ser estreitas. Um dos fatores restritivos dessa relação era o idioma, pois os
oficiais brasileiros, na sua maioria, não falavam o inglês corretamente.
Descortinando ainda mais esta nossa pequena contribuição à História do Presente,
aos poucos estamos adentrando alguns aspectos recheados de polêmicas que foram
ocultadas ou simplesmente "esquecidas" ao longo dos anos. Um destes temas é sexo
na Missão. Não houve grandes resistências para os veteranos tratarem deste tema.
Entretanto, em suas histórias na Missão parece que os veteranos narram/recuperam
apenas os fragmentos mais convenientes". Assim, apenas um falou abertamente
acerca de sexo ao recapturar sua história de vida na Missão. Sexo com mulheres
locais - palestinas -, era proibido de acordo com o que estabelecia os acordos
de não envolvimento com judeus e palestinos. Isso só poderia ocorrer depois dos
três meses iniciais cumpridos inteiramente na fronteira. Além do mais a
prostituição é um tabu e um crime pela lei islâmica, cuja pena é a morte da
mulher. Entretanto, com base nas narrativas estas determinações não foram
cumpridas. Aqui ficamos atentos ao que foi dito e ao que não foi dito, pois
também são significativos os silêncios sobre este e outros temas, especialmente
naquela experiência humana eivada de privações e constrangimentos, especialmente
de cunho sexual. Enfim, "essas lembranças, ou a dificuldade para expressar esses
sentimentos possivelmente expõem alguma dificuldade para desenterrar lembranças
eivadas de sofrimentos profundos, não resolvidos" como diria Thompson. Talvez se
trate para eles der experiências que tragam "vergonhas, ou sejam particularmente
complicadas e desconcertantes".
Evidentemente, que podemos compro peças de um grande mosaico que é a história da
Missão. A partir deste tema podemos encaminhar a um outro: a quebra da
disciplina e do controle das atividades internas dos batalhões. À esse respeito
o então cabo Theodoro, natural do Paraná, que participou do contingente de 1962,
enfatiza o papel pedagógico das funções de fiscalização que era realizado pelos
superiores para que os desvios de conduta fossem evitados e, ou exemplarmente
punidos. Sua visão se coaduna com a idéia de Foucault, para quem "o castigo
disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve, portanto ser
essencialmente corretivo... os sistemas disciplinares privilegiam as punições
que são da ordem do exercício - aprendizado intensificado, multiplicado, muitas
vezes repetido." Se os soldados não poderiam mostrar qualquer má conduta também
não seria admitida qualquer tipo de negligência, ou má vontade na sua Missão. No
mais adequado padrão de "corpos adestrados" e submissos. Caso contrário, eles
seriam repatriados e perderiam a medalha ou, no melhor dos casos, apenas não
serão indicados para recebê-la. O Medal Parade era um evento militar dos mais
concorridos que ocorria na Faixa de Gaza a cada três meses pois era o momento de
entrega de medalhas e comendas a praças e oficiais pelo staff da ONU na região.
Entre os fatos, memorizados e resgatados nos relatos destes veteranos,
observou-se que alguns foram mencionados por todos os entrevistados. Entre
tantos recolhemos aqui algumas referências à dicotomia árabe-israelense que se
afirmam na representação dos entrevistados. Todos compartilham da imagem de que
há uma diferença abissal entre o judeu e o árabe, sobremaneira, entre o
israelense e o palestino. Enfim, em todos os relatos sobre os árabes e sobre os
judeus, observamos um centro valorativo moral e narrativo da história que recai
sobre a seguinte questão: "os árabes são preguiçosos"; "são ladrões"; "não se
pode confiar neles". Fica claro que este é "um construto valorativo deles, mas
que também é encontrado "tanto na literatura e no cinema ocidentais quanto em
outras narrativas."
Cabe ainda, por último, apresentar um outro tema polêmico, materializado nas
narrativas dos veteranos piauienses do contingente de 1967. Essa narrativa
concentra emoções profundas do vivido no momento da Guerra dos Seis Dias e os
momentos finais de retirada da tropa para o Brasil. Para os participantes do
último contingente a memória que os une, não só nega qualquer atuação pouco
firme dos comandantes como também culpa o governo pela situação vexatória a que
foram colocados no teatro de operações da Guerra dos Seis Dias. Os israelenses
não sabiam da presença dos militares brasileiros remanescentes da FENU na
região. O depoimento do sargento Macedo, sobrevivente do avanço israelense sobre
o território egípcio, está provavelmente correto em seu julgamento de que a
permanência prolongada do Batalhão Suez na área do conflito foi conduzida com
extrema irresponsabilidade. As informações sobre a guerra iminente ao que parece
não chegou aos ouvidos dos oficiais ou foram sub-avaliadas, inclusive pela
soldadesca. A extinção da FENU também deve ser vista como um duro golpe para as
pretensões de alguns que como o sargento Macedo, viam na Missão uma chance de
ganhar dinheiro.
O suposto desconhecimento ou subavaliação de uma guerra potencial naquele
momento pelos membros do comando militar brasileiro no Oriente Médio, de modo
algum, diminui ou justifica a irresponsabilidade dos oficiais brasileiros
naquele momento. A versão que nos foi revelada pelo sargento Macedo de que o
Brasil aceitou o convite para permanecer na área do conflito por mais tempo como
convidado do Egito ainda é algo que precisa ser pesquisado mais acuradamente.
A análise das fontes orais transcritas, dos depoimentos por escrito e das
crônicas que tenho recebido via internet, tem revelado algo bastante
interessante na montagem deste trabalho. Os depoimentos escritos são de
veteranos de outros estados e muitos deles congregam atualmente a Associação
Brasileira dos ex-Integrantes do Batalhão Suez (ABIBS). Comparando as narrativas
orais com os depoimentos escritos observamos que é como se houvesse para alguns
fatos, duas memórias - a dos veteranos piauienses e a dos integrantes da ABIBS.
Seria uma "memória dividida". Muitas vezes elas entram em choque. Entretanto, há
uma concordância quanto ao descaso em que foram relegados os ex-integrantes da
Missão na extinção da UNEF e, especialmente, após o retorno deles ao Brasil.
Assim, um ponto de relevo do trabalho até o momento tem sido coligir este choque
de versões existente em vários depoimentos. Narrativas de desmandos contadas por
mais de um dos entrevistados piauienses com riqueza de detalhes dos eventos, são
copiosamente negados por outros, especialmente em nome de que o regimento
interno do exército não permitiria tais abusos, nem as autoridades locais, no
que estão corretos na sua avaliação. Este e vários outros pontos de discórdia
que tenho inventariado no estudo das versões serão mais bem analisados no
aprofundamento da pesquisa.
Os depoimentos dos veteranos piauienses e dos integrantes da ABIBS - ou não -
estão recheados de referências sobre a natureza dramática dos acontecimentos, a
gravidade de alguns erros do passado, o ressentimento de alguns dos
sobreviventes. Sem qualquer interesse de tomar parte ou de criticar as versões
de cada lado, devemos dizer que nossa tarefa é interpretar criticamente todos os
documentos e narrativas, especialmente aqui, quando nos deparamos com uma
memória dividida, para usar novamente uma expressão de Portelli. Ou seja,
memória dividida, não se remete apenas a um conflito entre a memória espontânea
dos veteranos com outra "oficial" e "ideológica". Na verdade, estamos lidando
com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas,
"todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas".
A análise do comportamento coletivo desta pequena parcela do enorme contingente
de homens que foi ao Egito entre 1957 a 1967, também revela que, para estes
veteranos, a importância da imagem pública impele à reconstrução de "um passado
linear, sem ranhuras", que se espelha também na forma de ver e atuar no
presente." Por seu turno, o Exército Brasileiro não se manifesta e "esquece" da
memória e das perdas daqueles que logo que chegaram ao país foram dispensados.
Por esta razão um dos objetivos deste trabalho é, dentro de seus limites,
resgatar ou reparar a memória menosprezada destes veteranos.
A UNEF gozava de sua hospitalidade do Egito, até que o presidente Gamal Abdel
Nasser dirigiu-se a ONU solicitando a retirada das tropas do território egípcio.
A 19 de maio, o Secretário Geral U Thant, atendeu ao pedido de Nasser,
determinando que a UNEF fosse evacuada do território Egípcio e da península do
Sinal, o que extinguia aquela Força. Os preparativos para retirada começaram, e
estava garantida a permanência da tropa brasileira até o dia 21 de junho de
1967, como hóspede do Egito. Entretanto, no dia 05 de junho de 1967, às 09:00
horas da manhã, os judeus começaram o ataque ao Egito e seus aliados; numa
guerra de apenas seis dias o pequeno, eficiente e bem equipado exército e a
força aérea de Israel impuseram uma fragorosa derrota aos árabes. Com o início
da Guerra dos Seis Dias, os brasileiros se viram cercados por fogo cruzado, e
não puderam retirar-se de imediato, o que somente foi possível uma semana mais
tarde, a 13 de junho de 1967. Chegando ao Brasil, a tropa foi desmobilizada.
BREVES CONCLUSÕES
A FENU I, por ser a primeira experiência internacional em missões de manutenção
de paz foi uma experiência marcante para o Exército Brasileiro seja pelo contato
da tropa com militares de outras nacionalidades, seja pela constatação da
versatilidade e da eficiência do soldado brasileiro, no seu conjunto ou operando
com militares de outras nações. Além da constatação da necessidade de investir
no preparo profissional dos integrantes, e da necessidade de modernização do
armamento e do equipamento e de habilitar os quadros em pelo menos um idioma
estrangeiro.
Sobre a Guerra dos Seis Dias com a conseqüente extinção e retirada da UNEF
daquela área, as narrativas possuem um tom de grande eloqüência e dramaticidade
na descrição nos seus momentos finais. Além das entrevistas sobre a Guerra dos
Seis Dias recebi alguns depoimentos escritos. Nenhum sobre os últimos momentos
ainda no interior do batalhão antes do retorno. O vigésimo e último contingente
era eminentemente composto por gaúchos, entretanto, havia três piauienses. Até o
momento manuseei apenas dois dos três depoimentos. O do sargento Macedo é,
inapelavelmente, o mais rico, o mais dramático e o mais polêmico. Entretanto,
ainda não podemos fazer as devidas revelações contidas em sua narração feitas em
três oportunidades. Macedo faz um relato a um tempo comovente e contundente da
experiência sob o fogo-cruzado e do que foi deixar uma Missão em que depositou
muitas expectativas pessoais, especialmente, a de ganhar dinheiro. Como ainda
não disponho de sua autorização para apresentar sua narrativa. De um de seus
depoimentos, gostaria de citar apenas uma de suas frases, que repetiu mais de
uma vez: "professor, eu tenho um princípio: eu não minto".
Resguardadas as polêmicas, cremos que a vivência de cada um deles no Egito por
vários meses "é essencial para conferir algum grau de confiabilidade das
informações. Menos que a busca objetiva da verdade dos fatos apresentados pelos
veteranos o importante, nas entrevistas, é o resgate das experiências pessoais e
únicas dos entrevistados." Através da metodologia da História Oral recuperamos
nestes senhores uma certa "capacidade narrativa - e, poderíamos mesmo afirmar
que, assim, operamos no sentido de uma humanização da História do Batalhão Suez.
As entrevistas transformadas em fontes escritas são a compreensão da experiência
de vários piauienses e de militares de outros estados no Oriente Médio, mais
precisamente na Faixa de Gaza na Primeira Missão de Paz da ONU. São estas
histórias alheias, experiências pessoais vividas no meio do deserto e nas
cidades do oriente que dão vida a este trabalho. Dessa maneira, colocamos cada
um dos veteranos "dentro da História", marginalizados que foram desde sempre
neste nível. Eles agora se acham sujeitos. A notícia de que são "Prêmio Nobel da
Paz" despertou neles mais interesse em contar a sua participação que há muito
estava adormecida, "esquecida" em suas mentes e corações. Este fato, novo,
despertou neles uma nova motivação ao narrar suas histórias, despertou também um
novo olhar sobre o estar lá, sobre ser um soldado da paz e ter participado da
Missão Suez. Agora sentem-se mais atores ativos e não apenas observadores da
Missão.
Os documentos escritos produzidos com a transcrição das fontes, são textos que
narram profundamente o significado daquela experiência vivenciada na Missão. É
um magnífico "inventário de lembranças" desses homens voluntários através da
história Oral.
A quantidade e a qualidade dos depoimentos orais que obtivemos até o momento são
de extrema relevância. Elas permitem-nos confrontar posições. Com as entrevistas
realizamos o trabalho de produção de fontes sobre alguns fragmentos do Batalhão.
Já é um começo. E, de certa maneira, com a recuperação da atuação destes civis
voluntários, soldados e oficiais, recupera-se uma parte da memória dos militares
brasileiros, com enfoque em novos personagens, novos atores. Desse modo, temos
consciência de que com este trabalho estamos construindo um novo saber,
apresentamos novos e diferentes pontos de vistas sobre a Missão, alguns são
conflitantes. Entretanto, há muitas concordâncias constatadas até o momento.
Temos consciência de que não seriam simplesmente os depoimentos sobre uma
Missão, um ancoradouro de concordâncias sobre a Missão multinacional de paz.
Menos que julgar se as afirmações estão corretas ou encobertas pelo manto da
longa distância temporal e espacial, temos em mente as palavras de Portelli para
quem "lidar com experiências que não as próprias e compreendê-las deve, também,
constituir a essência mesma da experiência antropológica... é improvável que
qualquer experiência possa ser verdadeiramente expressa; é inquestionável que
ninguém pode compartilhar a experiência alheia, dolorosa ou não... o esforço
para contar o incontável resulta em narrativas interpretáveis, construtos
culturais de palavras e idéias".
BIBLIOGRAFIA
Foucault, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes,
1987, p. 160.
Sebe Bom, José Carlos M. (Re)introduzindo a História Oral no Brasil. São Paulo,
Xamã/USP, 1996
Portelli, Alessandro. O massacre de civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de
junho de 1944): mito, política, luto e senso comum, in Amado, J. & Ferreira,
Marieta de Moraes (coordenadoras). Usos e Abusos da História Oral. Rio de
Janeiro: FGV, 2002.
Said, Edward. Orientalismo. O Oriente como construção do Ocidente. São Paulo,Cia
das letras, 2001.
Zoauin, Stans. Histórias de Suez, edição particular, 2003.
DEPOIMENTOS ORAIS:
SARGENTO MACEDO, do vigésimo contingente, 1967.
SARGENTO COIMBRA, do décimo nono contingente, 1966.
SOLDADO FONSECA, do vigésimo contingente, 1967.
SOLDADO BONIFÁCIO, do primeiro contingente, 1957.
DEPOIMENTO ESCRITO:
CABO THEODORO, do décimo contingente, 1962.
MANOEL RICARDO ARRAES FILHO
Departamento de Geografia e História
de Theodoro da Silva Junior <theojr@terra.com.br>
data 06/10/2008 00:45
assunto A CONSTRUÇÃO DA HIST.E MEMÓR. DO BTL.SUEZ